terça-feira, 28 de março de 2017

DESEJO



 Júlio Pomar
DESEJO  

Talvez a vida,
não a morte,
talvez a sorte
de acordar num navio
rumando a um novo mar
desconhecido

onde possa de novo navegar.

RELEMBRANDO



 António-Lino
RELEMBRANDO  

Passa a vida tão depressa
no ponteiro do relógio,
levanta, acorda,
lava a cara qual sonâmbulo,
apanha o metro,
toma café e um croissant
num boteco junto ao escritório,
pega pasta, arquiva pasta,
cataloga mil papéis,
a luz do dia esvai-se
por entre os estores entreabertos,
que vontade de voar
na asa branca da última gaivota,
poisar numa ilha deserta,
escrever poemas,
o dia escorrendo
entre os dedos e a caneta,
Que fazer, que dizer,
não há relógio de pulso,
sacode-se a areia,
é uma emoção o pôr do sol,
adormecer ao som doce
das ondas calmas

abraçando a praia.

Declaração



 Vera Chaves
DECLARAÇÃO

Dizem-me importas,
passo a ser importante
tomo contigo o comboio
e vou sem saber para onde,
a viagem será prenhe
sem confusão instalada,
com tempo para abraçar-te .
É soltar a liberdade
usando palavras sentidas,
enfiar pérolas escolhidas
num colar para o teu pescoço.
Sendo tarde para sonhar
o melhor é acordar,
tomar um café quente

que me faça despertar.

Um Gato




UM GATO

Subo devagar a escada,
no escuro do meu quarto
está o gato à minha espera.
Pede-me contas,
corre sem parar em meu redor,
quer saber por onde andei,
porque o deixei sozinho.
Sentiu saudades,
quis a minha companhia,
faltou-lhe o prato de comida,
o calor da presença.
Desprovidos os dois
de outras gentes,
temo-nos os dois o gato e eu.
Foi longa a explicação,
ele entendeu
e enroscando- se no meu colo,

adormeceu.

quarta-feira, 22 de março de 2017

MELANCOLIA



 Avelino Rocha
MELANCOLIA

Amanheceu diferente
cheirando a lavanda
sabendo a maçã.
A luz colorida
risca no dia um roteiro aberto.
Sobe o rio turbo
empurrado pela brisa
o último rabelo
saído do Douro.
Uma rosa vermelha
cai pétala a pétala
numa taça de chá

tomada na Ribeira.

FOTOGRAFIA



 Victor Silva Barros
FOTOGRAFIA

Olhos nos olhos
sorriso contra sorriso
como partir daqui
se ainda não se deu

a floração da Primavera.

CARNAVAL DE 2017



 Jorge Vilaça
CARNAVAL DE 2017

Árvores cinza
despidas, frias,
floridas só as acácias
de amarelo vestidas.
Das folhas caem gotas,
molhadas, húmidas.
Silêncio,
 tudo de boca fechada,
o dia ficou parado.
A vida escondeu-se
debaixo de uma manta de lã.
Dizem que é Carnaval,
no pátio brincam crianças
feitos cowboys inventados.
Olho para trás,
contando pelos dedos
em que ano do senhor
há um Entrudo
para o poder recordar.

PROCISSÃO



 Collado
PROCISSÃO

A Senhora da Anunciação
vai passando
poderosa no seu andor,
enfeitado a rosas,
Ouve em silêncio as preces:
morar num bairro ajardinado,
casa com três assoalhadas,
frente a um parque de tílias.
perto de escola bem equipada.
acesso a farmácia aberta,
transportes vários
a preços equilibrados.
Senhora da Anunciação
isto é divagação,
a saúde é o principal:
a hipoteca da casa
vai durar a vida inteira,
Depois vem o pão na mesa
que falta com certeza
não podendo faltar,
Ai dinheiro que não chega
água e luz a pagar,
a boca grande do estado
a sustentar.
Os crentes
num esforço sobre-humano
levam a virgem nos ombros,
pagando assim os milagres
do ano passado.
Senhora da Anunciação
padroeira desta aldeia esquecida
indica  o rumo aos vizinhos
pelo poder esquecidos.

quinta-feira, 9 de março de 2017

TEMPO


 Federico Eguia

TEMPO

O que se perdeu
o que ficou
no silêncio morno
dos dias a passar?
A casa ficou,
o jardim tornou-se selvagem,
não há agitação,
vozes, gritaria.
Há uma nuvem suspensa,
ameaçando chuva,
sombreando a claridade.
Continua-se o percurso,
num risco calculado,
caminha-se
há-se chegar a algum lado. 

UM JARDIM



 Maria da Conceição Pombo
UM JARDIM

Era uma vez um jardim
desenhado por mim,
eu que não sou designer.
Plantei as árvores que gostava,
arbustos odoríficos,
flores, montes de flores
de todas as cores.
explodindo na primavera e verão.
Os pássaros de manhã cedo
voando de galho em galho
eram o despertador da casa.
As abelhas zuniam
enquanto se serviam,
sem cerimónia, do pólen.
A verdura fresca
punha equilíbrio
no ar quente de Julho.
Mistura de céu e inferno,
enrola-se o fruto do labor,
o eterno esfrangalha-se,
os olhos parados no nada,

o meu jardim a desaparecer.

DESCRIÇÃO



 Collado
DESCRIÇÃO

Ali, frente à casa
era uma horta
ponteada de citrinos
sumarentos.
Nos Verões longos,
suados, ressalvados,
em sestas espreguiçando-se,
bebia-se jarros de limonada
empurrando bolinhos
de canela e passas
feitos pela minha avó.
Longe estava a cidade,
o estudo esforçado,
os exames calendarizados.
Jogava-se às cartas,
apanhava-se as frutas

para comer à ceia.

RIACHO



  Collado
RIACHO

No riacho da minha aldeia
a água corre
em direcção ao Douro.
A luz do dia quase se apaga
por entre as margens
prenhes de verdura.
Rega as hortas ribeirinhas,
move as penas dos moínhos
moendo milho e centeio.
Nas cercanias da água
crescem lírios e jarros,
único enfeite permitido
às casa pobres e escuras

existentes na minha meninice.

quarta-feira, 1 de março de 2017

TARDE NA CIDADE

Collado

TARDE NA CIDADE  

Beber um copo
de porto seco, gelado,
numa esplanada in
povoada de gaivotas.
Ler Fernando Pessoa
sentado à minha mesa
numa inquietação perene.
Segurar o cabelo
agitado pela brisa do rio.
Fotografar a rapariga estátua
vestida de princesa
soprando bolas de sabão.
Cruzar os dedos,
pedir sossego

para ler os poemas até ao fim.

ANTEVISÃO

Collado

ANTEVISÃO  

Há dias assim
consigo ler
para lá da visão.
O que são as coisas,
o que poderiam ser.
Nesta dialéctica
complexa
fico sempre a perder.
Deixei o tempo correr,
nada esperou por mim.
Flutuo como a madeira
gasta,
nas águas revoltas do mar.
Uns dias vou

outros fico a cismar.

CONVERSAS COM DEUS

Collado

CONVERSAS COM DEUS  

Converso com Deus,
ele tira-me
as cascas das feridas,
passa-me um unguento
por cima.
Dói-me.
Dá-me um beliscão
e diz:
doeu-me mais
ao deixares de ser meu amigo
enquanto te perdias

nas encruzilhadas da vida.

PARTIDA DE UM DEMOCRATA


Júlio Pomar
PARTIDA DE UM DEMOCRATA  

Sabes Mário
todos vimos, partiste.
Do que temos mais saudade
é desse ar bonacheirão
da resposta pronta,
das conversas fluentes,
da mestria
com que metias no bolso
os galifões.
Não valem nada,
mesmo nada,
Não participaram
neste nossa liberdade
conquistada com dor.
Lá nesse lugar onde estás
a fumar um charuto cubano
com o anjo Gabriel,
rir-te-às das homenagens
funerárias,
onde de premeio perfilhavam
alguns que conspiraram
contra ti
Permita deus
que a cinza lhes caia em cima,
surpreendê-los mais uma vez
com a tua rebeldia.