quinta-feira, 30 de julho de 2015

POUCO AMIGO

Yuri Firmeza

POUCO AMIGO

Nunca mais
digas que és meu amigo,
caí,
não me desta a mão
para prosseguir o meu caminho.

INSTINTO

Almada Negreiros

INSTINTO  

Cheiras de longe o baile do ano.
Ficaste às aranhas, choravas,
cheguei
montado na mota velha,
ajoelhei-me devoto
concertei como pode
o teu chinelo encarnado.
Tu disseste:
que bom teres aparecido.
Ergui-me como um pavão,
mostrei os músculos trabalhados,
abracei-te forte,
ofereci-me para tua companhia.
Não te faltei,
não me faltaste,
voava o teu cabelo farto,
contra o vento,
contra a pressa
de chegarmos.
Tudo ardeu em lume brando
na pista de dança
improvisada,
até nos transformarmos
em coloridas borboletas.

FRANCISCA

Modigliani

FRANCISCA  

Um domingo chato,
na televisão um sapateado,
repetitivo,
antigo,
os pássaros comem
as sementes das cenouras
no quintal,
o meu trabalho de sábado,
por água abaixo.
Com uma fisga matá-los-ia,
se a tivesse,
e se a coragem não me faltasse.
Vou até a horta,
avariou-se-me a bomba
elevatória da água do poço
 o tanque está vazio.
tu não te aproximas de mim.
Tenho na carteira
as fotos
do último verão,
ainda não as vistes Francisca.
Dá-me o direito
de ter novamente voz
sem me arrastar nas saudades
de um tempo
que ainda não se viveu.

HOJE

Picasso

HOJE  

Hoje
é tudo importante,
as baladas simples
dedilhadas
num só acorde,
a lua a reflectir-se
no cinza dos teus olhos,
os sonhos das raparigas
que nos portais escuros
esperam os  namorados.
os momentos trancados
no peito,
os arquivos da memória,
as durezas de cada história,
os Verões ferventes,
os Invernos tristes,
a glória de ter amado,
o querer viver ainda
no intervalo das guerras.


UM INVERNO AGRESTE

Camille Pissarro

UM INVERNO AGRESTE  

O bafo húmido
do Inverno
tocava nos ombros
dos transeuntes.
Os transportes públicos
passavam apinhados,
a neve não derretia.
O sol envergonhado
não aquecia
as ruas geladas
Nos cafés iluminados
tomávamos à pressa
xícaras de café quente.
Discutia-se o tempo,
tal rigor num Inverno
era raro.
A chuva forte
amainou
a temperatura do ar.
Os polícias de giro
abrigam-se nos portais
de Santa Catarina.
Só os pares de namorados
de mão dada
esquecidos das intempéries
trocam sorridentes
juras de amor.

sexta-feira, 17 de julho de 2015

PREDISPOSIÇÃO

Crhistine Cázanne Thauss

PREDISPOSIÇÃO   

Vesti
sem razão aparente
um vestido às risquinhas verdes,
calcei uns sapatos de camurça
de tacão grosso,
vintage,
apertei o cabelo sedoso,
apanhei-o
com um laço de cetim negro.
Pintei os lábios de vermelho,
borrifei o pescoço
de perfume suave
cheirando a flores de jardim.
Nos pulsos
pulseiras de pechisbeque,
o andar arrastado
de quem não sabe o que quer.
Saber, sei o que quero,
um país livre,
onde não nos condenem

 a ser cada vez mais pobres.

REGRESSÃO

Almada Negreiros

REGRESSÃO  

Fechados os olhos
há o regresso à infância,
o arrombar todas as portas
sem consequências de maior,
só o tabefe
que ficava marcado
desaparecendo de manhã.
O coração era uma corsa
batendo descompassado
no intervalo das aulas.
Os tímpanos automaticamente
fechavam
logo que a professora gritava:
seis bolos pelos erros no ditado.
Renunciava-se às regras
e nadava-se no lodaçal
da ribeira.
Tínhamos a eternidade,
esticavamos a corda
a ver se aguentava

o nosso peso intemporal.

PEDIDOS

Roberto Sguanci

PEDIDOS  

Retirara o mel das colmeias,
lambuza a boca,
os dedos,
roça os sentidos pela doçura,
bate na cortiça,
afasta as abelhas,
dá-me um beijo pegajoso,
reacende o dia morno,
afoga-me com mimos,
cava a horta,
planta morangueiros,
dá-me notícias de ontem,
não quero o seu efeito imediato,
põe no meu pescoço
um leve colar de prata,
dança comigo
na margem do rio,
assume as tuas falhas,
abana a palmeira,
inventa tâmaras,
movimenta o barco,
leva-me contigo
ao sítio onde nasce

a esperança.

GRÉCIA

Botticelli

GRÉCIA  

Hei-de regressar
Grécia,
não sei quando
mas hei-de regressar,
percorrerei com redobrada
curiosidade
cada templo,
onde ainda moram deuses
cansados,
não amparando os Gregos.
Visitarei
os antigos estádios
onde  o louro pagava
o esforço humano.
Gritarei nas falésias
das praias
as glórias eternas
de um povo grande.
Apontam-lhe uma arma
à cabeça e dizem-lhe:
os fazedores da democracia
também ajoelham.
Permanecerei algum tempo
no Parténon
onde se elaboraram justas leis,
hoje refém dos verbos deve e haver
e das soluções hediondas

remendadas em Bruxelas.

PERCALÇO

Roberto Sguanci

PERCALÇO   

Pé ante pé
espreitei de soslaio
o teu sorriso maroto,
tropecei
e sem querer
fiquei
agarrada ao teu pescoço.
Nem para a frente
nem para trás,
ali onde fui capaz
para não cair
apertei as tuas mãos.
Sorri
envergonhada,
espantada
com tal aparato.
Tiraste do bolso
um caramelo,
ofereceste-mo,

acabou o embaraço.

terça-feira, 7 de julho de 2015

LUCÍLIA

Dana Schutz

LUCÍLIA  

Abriu a porta,
não estava o seu amado,
é um facto
tudo devia regressar
há algum tempo atrás.
Viu algures num filme:
não estar deliberadamente.
é sinónimo de cansaço.
Essa realidade
não devia caber
na sua linda história.
Lembra-se
do seu hálito a maçãs,
das suas mãos
determinadas,
a percorrer o seu corpo,
vento de monção,
disposto
a causar tempestade.
Alguém o quis perfeito
para encaixar no seu peito

de costureirinha enamorada.

O MUNDO DO TOMÉ


Mimmo Paladino

O MUNDO DO TOMÉ

Tocaram os sinos
às trindades,
chegou a casa cansado,
sabem,
o mundo é chegar a casa,
sentir o cheiro adocicado
da sopa de favas e hortelã,
o sabor suado
da broa de milho
cozida de manhã,
ouvir palavras,
soltas,
várias,
desmontando um dia
acidentado.
Foi domingo
só porque estou contigo,
comi com sofreguidão
a fruta doce,
pensei que a grandeza,
o equilíbrio do universo,

existem por ter-te.

UM OLHAR APURADO

Beatriz Balen Susin

UM OLHAR APURADO  

Olhei-te
como se fosses uma sombra,
tens tantos defeitos,
a tua maldade é estranha.
Os teus olhos semi-cerrados
não olham, vergastam
tudo e quem se aproxima
mais que a tua deixa.
Sabes a fruta amarga
daquela que se prende à língua,
a deixa espessa e ácida.
Plantaste silêncios
colhes tempestades,
à semelhança de Pilatos,
lavei as mãos,
afastei-me

para longe dos teus passos.

PÉROLAS A PORCOS


Van Gogh

PÉROLAS A PORCOS  

Ofereci-te
sem razão aparente 
um coração de filigrana,
comprado
numa ourivesaria
improvisada,
plantada numa cave
da parte velha da cidade.
Demorei uma semana
a namorá-lo,
meio ano a poupar
para to comprar.
Em ânsias
só queria vê-lo
pendurado  no teu pescoço
de gazela.
Combinamos uma saída,
supostamente alegre,
disseste que a jóia
era grande,
dava nas vistas.
Tens razão
o tamanho do meu amor
não cabe
no teu pequeno peito.
O mundo que inventei
é só meu
as cores
que lhe deste

não existem.